4.11.10

Cultura para a periferia II


Na primeira postagem, refleti que o desenvolvimento da Indústria Cultural chegou a tal ponto que os consumidores são por ela padronizados e classificados, de modo que as mercadorias culturais que consomem são previstas para seu tipo social e espera-se deles que espontaneamente reconheçam essa marca de distinção. Theodor Adorno percebeu esse fenômeno há mais de meio século atrás, e pode-se dizer que ele marca a virada da Indústria Cultural do capitalismo de livre mercado para a era do capitalismo imperialista; da era da concorrência para a era do monopólio, no sentido que Lenin coloca a questão.

Também afirmei que os trabalhadores consomem muitas mercadorias culturais, mas justamente aquelas para eles especialmente produzidas pela Indústria. Por essa razão, não se pode falar exatamente que falta cultura para os trabalhadores. Muitos chegam a essa questão, em especial um setor da classe média intelectualizada, reivindicando que a periferia passe a consumir mercadorias culturais de padrão mais elevado, ou seja, do padrão da classe média intelectualizada, pois essas mercadorias seriam mais culturais, mais elevadas culturalmente que os fenômenos de massa. É um ledo engano, pois no fim das contas se trata da própria classe média aceitando com gratidão a distinção imposta pela Indústria.

Deixemos de lado, por enquanto, a questão sobre a libertação cultural dos trabalhadores. A ela voltaremos em outra oportunidade. Por hora, nos interessa a abordagem de um ponto não tão prático quanto evidente. Curitiba será palco da Virada Cultural, evento que já ocorreu em São Paulo, por exemplo, no qual durante alguns dias haverá exposições, shows musicais e peças, tudo com acesso gratuito. Será esta uma política cultural democrática?

Podemos afirmar com toda a certeza que é antidemocrático no sentido de que as atrações da Virada ocorrerão todas no centro da cidade ou em locais elitizados, o que dificulta o acesso dos moradores da periferia. E como a cidade espelha em sua geografia a sua composição social, ou seja, cada classe tem nela o seu espaço de acordo com o valor da terra urbana, os trabalhadores já estão geograficamente excluídos do espetáculo.

Argumentar-se-ia que o deslocamento é possível, pois muito mais barato que os ingressos que não serão cobrados. Nisso se chega, por exemplo, ao porquê das denúncias do corte de algumas linhas de metrô quando da Virada em São Paulo, impedindo a periferia de ir ao centro. Mas também devemos levar em conta que a vida urbana de cada classe é subjetivamente diferente. Os trabalhadores vivem em suas vilas, e sua condição social geral lhes impõe uma experiência urbana qualitativamente diversa daquela das classes médias e dos ricos. Encerra-se na vila, no trabalho e em mais alguns pontos esporádicos. A exclusão geográfica gera também uma barreira subjetiva. Há lugares para os quais não se vai. A cidade também classifica os seus consumidores.

E Curitiba os classifica muito bem. Tão bem a ponto de gente achar que aqui não há pobreza, quase não há favelas. Mas até a ONU reconhece que é a 17ª cidade mais desigual do mundo, e uma visita ao Tatuquara ou uma olhadela nos índices de violência não deixam mentir. É uma cidade muito injusta, e aqui a exclusão geográfica dos trabalhadores é brutal. Existe a cidade-modelo, mas existe também o seu Outro, a grande periferia pobre e violenta onde moram os trabalhadores, tornada invisível pelo urbanismo bem implementado – e por isso tão celebrado.

Mas nisso não se encerra todo o problema. As atrações programadas também classificam o seu público. Teremos Arrigo Barnabé, Hermeto Pascoal e Erasmo Carlos. É só conferir o mapa da programação e tirar as próprias conclusões (http://tinyurl.com/2aezzmy). Não é o caso aqui de avaliar estes artistas, que fique bem claro, até porque Barnabé e Pascoal merecem todo o nosso respeito (e nossa presença). Também teremos a presença da banda Sabonetes, do meu estimado amigo Wonder, a qual fortemente recomendo para os apreciadores do pop-rock atual. Deixadas estas considerações, sigamos.

O fato de não se cobrar ingresso esconde muito sutilmente que por trás da aparência democrática da Virada se opera uma exclusão brutal. O anúncio de gratuidade produz nas entrelinhas a mensagem de que todos são livres para comparecer porque a barreira econômica foi abolida. Entretanto, o público do evento já está previamente selecionado, seja pelo mecanismo de segregação geográfica urbana, seja pelo mecanismo de seleção pelo consumo. E espera-se que compareçam.

O dinheiro público empregado na empreitada é arrecadado através de um sistema que tributa absurdamente mais os pobre que os ricos, como não nos deixa enganar o IPEA (http://tinyurl.com/354yzuo). No fim das contas, rapidamente chegamos à conclusão de que oferecer espetáculos gratuitos como a Virada é a melhor forma de fazer com que os trabalhadores paguem os ingressos dos mais ricos, comprando para eles as mercadorias culturais de sua preferência. E se questionarmos, a resposta está na ponta da língua: mas a entrada é livre!

O público esperado é também aquele que mais tem condições de pagar pelas atrações. Como bem lembrou o companheiro Bruno Meirinho, não estão faltando escolas, infraestrutura urbana, etc, nas periferias? Ou está tudo tão bem que podemos nos dar ao luxo de gastar tanto dinheiro com espetáculos para as classes que poderiam pagar por isso? No capitalismo é assim, quanto mais se tem, menos se paga.

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